Após se recuperar, foi mantida em cárcere privado, sofreu
outras agressões e nova tentativa de assassinato, também pelo companheiro.
Esta é a história de Maria da Penha Maia Fernandes,
semelhante a de outras tantas mulheres vítimas diariamente de violência
doméstica e familiar no Brasil.
Graças à sua busca de quase 20 anos por justiça, Maria da
Penha deu nome à Lei Federal 11.340/2006, que completa dez anos em 7 de agosto
e representa o principal instrumento legal de enfrentamento a agressões contra
a mulher nas relações privadas.
“Acordei com um barulho muito forte. Tentei me mexer e não
consegui. Na hora pensei: 'o Marco me matou'. Passados alguns minutos, fiquei
escutando tudo o que se passava ao meu redor, mas não podia sair de onde estava
e fiquei rezando e pedindo a Deus que me deixasse viva, que não deixasse minhas
filhas órfãs de mãe”, conta Maria da Penha, em entrevista ao Ministério Público
do Paraná. “Lembro-me de ouvir muitos barulhos dentro de casa, como se um
assalto tivesse acontecido, e depois alguns vizinhos entrando, virando meu
corpo e assustando-se com o que o viam.”
Só mais tarde Maria da Penha descobriu que, na tentativa de
esconder a autoria do crime, o marido, Marco Antônio Heredia Viveiros,
economista colombiano e professor universitário, fingiu ser vítima de um
suposto assalto: quebrou vasos da casa, rasgou o pijama, colocou uma corda no
pescoço e mentiu para a polícia dizendo que havia sido atacado por assaltantes,
que tentaram enforcá-lo. Ninguém acreditou em sua versão, mas, ao mesmo tempo,
nada lhe aconteceu.
“Fiquei quatro meses hospitalizada – dois em Fortaleza e
dois em Brasília. Ao voltar pra casa, Marco me proibiu de avisar a minha
família que estava chegando. Visitas eram só com autorização dele, que também
proibiu minhas filhas de se aproximarem de mim por um tempo.”
Maria da Penha, mesmo em recuperação, continuou a sofrer
agressões do marido, que, num intervalo de 15 dias, tentou assassiná-la
novamente por eletrocução no banho.
Foi também nesse período que ela, com a ajuda de vizinhos e
de duas mulheres que trabalhavam em sua casa, conseguiu o documento de
separação de corpos.
Durante uma viagem de Marco a trabalho, Maria da Penha fugiu
para a casa dos pais com as três filhas, na época com sete, quatro e dois anos
de idade.
“No fim daquele ano de 1983, consegui prestar meu depoimento
à polícia, que também chamou Marco para finalizar o processo. Como ele não se
lembrava do que tinha dito na época do crime, acabou entrando em contradição e
foi responsabilizado por tentativa de homicídio e por ter forjado o assalto.
Marco ainda ficou em liberdade por 19 anos e seis meses. Passou por dois julgamentos
– o primeiro em 1991 e o segundo em 1996 –, mas nas duas vezes conseguiu
recorrer. Depois disso, fiquei muito revoltada com a omissão da Justiça e
decidi escrever um livro que seria a sentença de Marco e a carta de alforria
das mulheres brasileiras.”
Em 1994, Maria da Penha publicou o livro “Sobrevivi... Posso
Contar”, que, no ano de 1997, serviu de instrumento para denunciar o Brasil na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA), em parceria com o Comitê Latino-americano e do Caribe para a
Defesa dos Direitos da Mulher e com o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional.
A denúncia resultou, em 2001, na condenação internacional do
Brasil pela tolerância e omissão estatal com que a Justiça tratava os casos de
violência contra a mulher. Com essa condenação, o país foi obrigado a adotar
uma legislação específica que permitisse, nas relações de gênero, a prevenção e
a proteção da mulher em situação de violência doméstica, assim como a punição
do agressor.
Em decorrência dos fatos, o então presidente, Luis Inácio
Lula da Silva, por meio da Secretaria de Políticas para Mulheres, criou um
projeto de lei que, em 7 de agosto de 2006, foi transformado na Lei Federal
11.340 – a Lei Maria da Penha. A lei entrou em vigor em 22 de setembro de 2006.
Marco Antônio foi preso em 2002, faltando apenas seis meses
para a prescrição do crime. Ele foi condenado a oito anos de prisão, mas ficou
apenas dois em regime fechado.
Muito a ser feito
“Toda mulher tem o direito de viver sem violência e quem
está garantindo isso é a Lei Maria da Penha. Agora as mulheres têm uma lei que
garante a elas o direito de se separar, de serem protegidas, o direito de ir e
vir, e de ter garantia de uma vida tranquila para ela e seus filhos.” Maria da
Penha conta que, até o ano de 1983, tentou sair de sua relação violenta, mas
não havia como acionar nenhum órgão que lhe garantisse proteção. Assim, teve
que manter o relacionamento, porque o marido na época não aceitava a separação.
“Agora a coisa é diferente.”
Apesar de reconhecer a importância e a eficácia da lei,
Maria da Penha lamenta o fato de ainda haver muito a ser feito.
Para ela, a legislação funcionaria muito melhor, se
existisse uma estrutura mais adequada para sua aplicação, o que ainda não é
realidade, principalmente nos municípios afastados das capitais.
“São necessários mais Centros de Referência e Atendimento às
Mulheres em Situação de Violência, Delegacias da Mulher, casas-abrigos e
juizados especializados. Há muitos casos parados, ainda sem solução”, aponta.
“A lei ainda não funciona como deveria, mas fato é que, sem ela, a violência
doméstica não teria a visibilidade que tem hoje. Antigamente não se falava
sobre esse problema.”
Maria da Penha enaltece o trabalho dos centros de referência
e os avalia como um dos melhores equipamentos da lei, quando bem estruturados.
Ela afirma que nesses locais as mulheres são muito bem
assessoradas por equipes psicossociais e jurídicas que as orientam e
apresentam-lhes as possibilidades de sair da situação em que se encontram.
A discussão nas escolas sobre o tema da violência doméstica
contra a mulher também é um ponto evidenciado por Maria da Penha, que ressalta
ser fundamental para o fim de uma cultura machista e agressiva.
“As crianças não podem mais crescer achando que o hábito de
o pai bater na mãe é normal e que a voz do homem é lei dentro de casa. Esse
ciclo precisa ser quebrado.”
*Cearense de Fortaleza, Maria da Penha é farmacêutica
bioquímica pela Universidade Federal do Ceará e mestre em Parasitologia em
Análises Clínicas pela Universidade de São Paulo.
É fundadora do
Instituto Maria da Penha, uma organização não governamental, sem fins
lucrativos, que visa, por meio da educação, contribuir para conscientização das
mulheres sobre os seus direitos e o fortalecimento da Lei Maria da Penha.
A Lei Maria da Penha está entre as três legislações mais
avançadas do mundo, segundo o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a
Mulher.
Foto: Instituto Maria da Penha