quinta-feira, 2 de abril de 2015

A desinformação venceu a razão

Murillo José Digiácomo
A aprovação da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional sobre a redução da maioridade penal pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados já era esperada, em especial diante do verdadeiro clima de “comoção” criado em torno do tema por alguns veículos de comunicação que insistem em desinformar a população acerca da verdade por trás da responsabilização de adolescentes envolvidos com a prática de infrações penais.
Parte-se de premissas absolutamente equivocadas (a começar pela suposta falta de meios idôneos já previstos em lei para coibir tais condutas e dar a seus autores uma “resposta” adequada e proporcional à sua gravidade), usa-se de argumentos falaciosos (como a questão do “discernimento”, superada desde o Código Penal do Império) e, por vezes, mentirosos, para se chegar à conclusão de que a “solução mágica” para o problema da violência no Brasil seria a redução da maioridade penal.
Nenhum dos argumentos em favor da redução da maioridade penal, assim como a promessa que esta seria a “panaceia” para todos os males que acometem a sociedade brasileira, resiste a uma análise crítica acerca de sua razoabilidade.
Culpar a lei vigente (notadamente o Estatuto da Criança e do Adolescente) pelo verdadeiro “caos” na segurança pública em que o país se encontra chega a ser pueril, e somente quem não conhece quer o Sistema Socioeducativo, quer o Sistema Penal brasileiro pode ter a ilusão de que encaminhar adolescentes para este último terá algum efeito positivo sobre os índices de violência, especialmente a médio e longo prazos.
Muito pelo contrário. O ingresso precoce (e se pretende cada vez mais precoce) de adolescentes no Sistema Penal (que se encontra comprovadamente “falido” e em boa parte “dominado” por organizações criminosas), com índices de reincidência que beiram (e em alguns casos superam) os 70%, seguramente apenas irá agravá-los, isto se houver vagas suficientes para recebê-los, considerando que, segundo dados de 2012, havia um déficit de 237 mil vagas no Sistema Prisional, alem de 437 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos (isso somente em relação a adultos penalmente imputáveis).
Outros países que incorreram no erro da redução da idade penal, como é o caso da Espanha e da Alemanha, logo trataram de aumentá-la novamente, e mesmo países considerados “conservadores” e “rigorosos” na repressão de infrações penais praticadas por adolescentes, como é o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, têm revisto a forma de tratar seus jovens infratores, apostando na educação e na busca de alternativas ao encarceramento em estabelecimentos prisionais como solução para o problema da violência.
A educação, aliás, é o único – e verdadeiro – caminho, e isso não significa, logicamente, que adolescentes autores de infrações penais não devam ser responsabilizados por seus atos e mesmo, se necessário, colocados em regime de privação de liberdade (como, aliás, hoje já ocorre, de acordo com a lei vigente). Mas isso deve ocorrer num local adequado, que respeite sua condição de pessoas em desenvolvimento (assim reconhecida pela própria Constituição Federal) e lhes proporcione oportunidades concretas para uma vida digna e produtiva para sociedade.
A redução da maioridade penal, se aprovada, fecharia essa última “janela de oportunidade” para reversão da espiral de violência e intolerância na qual o Brasil se encontra (e que a Lei Penal comprovadamente não é – e nunca será – capaz de reverter), com gravíssimas consequências para as gerações futuras.
É por essas e outras (muitas outras) razões que conclamamos todos os cidadãos conscientes – assim como nossos nobres parlamentares – a se informarem melhor sobre a matéria e não se deixarem levar pela emoção (e pela ilusão), assim como pelo discurso populista e sem qualquer lastro de verdade que culpabiliza os adolescentes pelo aumento da violência no Brasil (esquecendo de mencionar que eles, comprovadamente, são muito mais vítimas do que autores dessa violência). Tal discurso, de forma até mesmo irresponsável, pretende “rasgar” a Constituição Federal unicamente para satisfação daqueles que não têm qualquer compromisso com o cumprimento de seus preceitos e princípios, notadamente os que – no sentido diametralmente oposto ao preconizado pela proposta de redução da idade penal – prometem a plena efetivação dos direitos de todas as crianças e adolescentes brasileiros.
Não é, enfim, com a pretendida alteração de uma das “cláusulas pétreas” da Constituição Federal (o que, por sinal, é juridicamente inadmissível) que o problema da violência no Brasil será resolvido, mas sim, justamente, pelo efetivo e integral cumprimento do que já está posto no ordenamento jurídico brasileiro, com a implementação de políticas públicas que, de fato, priorizem a criança e o adolescente nas ações do Poder Público, num viés eminentemente preventivo que é justamente a antítese do que se apregoa.
Esse é, sem dúvida, um caminho mais longo e difícil, mas também é o único capaz de dar as respostas sérias e idôneas que a sociedade brasileira precisa e tem o direito de receber por parte do Poder Público.
Ainda há esperança de que, se a matéria for analisada e tratada como deve ser, de forma serena, refletida e responsável para com a sociedade brasileira por parte do Congresso Nacional, essa e as demais propostas de redução da maioridade penal sejam rejeitadas. E que o movimento seguinte seja voltado à cobrança do efetivo e integral cumprimento da lei e da Constituição Federal, a começar pela recém editada “Lei do Sinase”, que institui um novo modelo para o atendimento de adolescentes autores de infração penal em todo o Brasil e que ainda se encontra em fase incipiente de implementação.
A sociedade brasileira (em alguns casos, mesmo sem se dar conta) perdeu uma importante batalha, mas ainda há tempo de vencer a guerra contra a desinformação e a iniquidade.
Quem viver, verá.
Murillo José Digiácomo é procurador de Justiça, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Paraná